Bloguista acidental que não acidentado (ninguém se feriu durante a criação do perfil e conta associada). Pequenas histórias de um quotidiano cheio de surpresas ao virar da esquina. Prémio Pulitzer de escrita criativa durante os últimos dez anos, sem excepção. Recomendado por milhares de escritores e críticos de Kuala Lumpur a Montevideo. Temido por alguns grupos de pressão. Talvez exagere.
sábado, 7 de agosto de 2010
O futuro pode ser muito complicado. E algo imprevisível...
A Inês diz que precisa de saber o que vai acontecer daqui para a frente. De averiguar o que se vai passar na próxima semana. O que vai ocorrer no próximo mês. O que vai estar a dar no próximo ano. Enfim, a Inês precisa de ir à bruxa. Ela não gosta desta expressão e diz que prefere dizer a toda a gente que vai consultar um oráculo. Uma vidente. Um mestre na arte visionária da bola-de-cristal. A Inês é aquela rapariga que na lua-de-mel em Salvador da Bahia foi ver uma mãe-de-santo e pensou que a pobre senhora queria jogar com ela ao dominó quando lhe perguntou se "queria lançar búzios". Uma rapariga inocente e didáctica, portanto. Deve ser por isso que me liga a perguntar se eu conheço alguém de confiança. Nada de especialistas de vão de escada ou tarot do Monopólio, diz ela. Eu tento lembrar-me dos vários professores e mestres africanos do Rossio que dão consultas 24 horas por dia e também atendem ao telefone mas ela quer algo mais discreto. Sem telefone ou turbante na cabeça. Um místico Prada, seguramente. Eu digo que a Maria gosta muito da D. Luisinha dos Espíritos no Magoito e ela aprecia o nome e local discreto. Ligo para a Maria a pedir o número de telefone e quando digo que é para a Inês a Maria avisa logo que a D. Luisinha é muito cara e que não dá consultas às quartas-feiras. Como é o único dia em que a Inês consegue sair do SPA / Beauty Center onde está agora a coordenar a área VIP, temos de inventar uma desculpa. A Inês vai trabalhar na terça-feira e começa a espirrar para todo o lado e a dizer que está com o vírus do Nilo. A dona do SPA, que odeia o Egipto e detesta papiros e múmias, manda-a para casa recambiada com três testers da Shiseido e duas toalhas turcas banhadas em água benta da piscina. E na quarta-feira logo pela manhã lá vamos nós conhecer a D. Luisinha dos Espíritos ao Magoito. A Inês diz que não se sabe orientar bem nesta região sem GPS mas após três horas e de várias manobras perigosas lá encontramos a vivenda com jardim e pomar de laranjeiras, tal como um pastor alemão que deve ser também espírita porque quando vê a Inês foge a sete patas sem ladrar. A D. Luisinha tem uma secretária catita que nos recebe sob o pseudónimo de D. Ermelinda Espanta-Pássaros e nos faz aguardar numa salinha com duas cadeiras, uma fotografia do Diego Maradona e um poster do Pastilhas Futebol Clube com a legenda "Figo, volta a ser maduro e não gostes de Kuduru". A Inês fica impressionada pela qualidade visual da sala e começa a folhear as revistas na mesinha de apoio. Temos duas Hola de 1987, uma Nova Gente de 92 e um catálogo da Gulbenkian de 2002. A D. Luisinha pode ser bruxa, mas é muito eclética. A D. Ermelinda entra na sala e manda-nos passar para o estúdio espírita da patroa. Mal entramos damos de caras com uma senhora diminuta vestida de grená e com uma bandana na cabeça com dois pirilampos mágicos (um da campanha de 89 e outro da de 95). Uma bruxa solidária também e algo vintage. Aprovo de imediato. A D. Luisinha manda-nos sentar e pede para tocar na mão da Inês. Mal se tocam a D. Luisinha emite um grito gutural e diz que a Inês está carregada. A Inês diz que até nem tem muito peso na mala e que os sapatos da H&M da colecção Cruise 09/10 são muito leves. A D. Luisinha não percebe a versão fashionista da minha amiga e começa a fazer perguntas. Se a Inês sabe que a irmã traiu o marido com o último namorado dela uma vez no Meco (já sabíamos e apoiamos), se a Inês sabe que o pai tem muito dinheiro escondido num balde enterrado na propriedade no Ribatejo (não sabíamos mas vamos averiguar de imediato), se ela sabe que a melhor amiga dela no SPA é transformista nas férias de Verão em Helsínquia (já desconfiávamos), se ela se apercebeu que o actual namorado nunca vai passar de número dois no ranking dos lutadores de Muay Thai do Restelo (que pena, tínhamos esperanças). Mas a D. Luisinha prega-nos um susto quando diz que a Inês tem de se preparar para o pior. Para uma grande desgraça. Para um surto de má sorte. E diz também que vem aí uma vaga de mau olhado (e não estrabismo como no meu caso em criança) lá no trabalho no SPA e nas férias em Vilamoura neste Verão com a família do namorado. Eu começo a temer pelo pior e até tremo. A Inês começa a ficar branca e a pensar em desgraças. Inundações, doenças, fogos no guarda-roupa, sapatos que se estragam na primeira noite no Frágil, congestões com gelados na praia, dores de barriga no cinema a ver o último filme do Tom Cruise. A D. Luisinha olha fixamente para nós e diz muito séria que desta vez é barra pesada. Que temos de nos preparar. Que temos de comprar víveres para dias complicados. A D. Luisinha pega na mão da Inês e diz num tom muito compenetrado e místico: "Este ano vai receber uma carta registada das Finanças e tem 356 Euros para pagar de IRS". A Inês solta um grito e agarra-se a mim. Abre a mala e tira um carta toda dobrada. É das Finanças e já está sem o picotado. Passa-a para a minha mão e diz-me para eu a ler. A D. Luisinha tem razão e vale o dinheiro que lhe pagamos sem recibo. A Inês vai ter de ir ao Multibanco fazer a transferência até amanhã sem falta dos 356 Euros. Eu não acredito em bruxas mas que as há, e financeiramente responsáveis, isso é que as há. No Magoito.
terça-feira, 3 de agosto de 2010
O Zé Eduardo aprende a cozinhar. Mais ou menos...
Quem é um pai atento descobre sempre quando está em falta. Quando falhou e não deveria ter falhado. Quando precisa de compensar. Quando precisa de ser perdoado. Quando exige ser adorado incondicionalmente outra vez. O Zé Eduardo é um pai amoroso mas às vezes esquece-me de algumas coisas importantes. Dar banho aos miúdos (que agradecem), ler uma história para adormecer (adormece ele primeiro), cantar com eles as músicas da Leopoldina (nunca percebi esta), vestir-lhes as roupas acertadas cada manhã (as crianças vão para o colégio com os fatos de Judo), preparar-lhes os lanches (vão com pacotes inteiros de bolachas e um litro de leite da Mimosa Cálcio cada um). Como esta semana a Sílvia está em Londres e os miúdos estão de férias, o Zé decidiu ser um Super-Pai e cozinhar para eles (e para mim por arrasto) pela primeira vez na vida. Claro que hoje me ligou umas cem vezes a perguntar se eu sabia como se acendia o botão do forno ou onde é que a empregada guarda a comida em casa. E também se a carne assada precisa de ser cozida no micro-ondas primeiro. E durante quantas horas.
Quando chego pelas 19.00 PM em ponto ele já está de avental e os miúdos estão em festa. O nudista-terrorista hoje está muito bem vestido de pijama do Snoopy e cabelo com brilhantina (é pasta de dentes de mentol que a irmã despejou pela cabeça dele à tarde). A terrorista cabeluda hoje está também bem disposta e calça uns Jimmy Choo da mãe aos quais já arrancou uma das presilhas e cortou um dos saltos com a tesoura da Barbie Cabeleireira. Começamos lindamente. O Zé anda de um lado para o outro e tira dezenas de taças e pratos sem qualquer sentido prático, Muda-os do balcão para a mesa e vice-versa e os miúdos pensam que é um jogo e partem metade no chão. Depois começam a partir os copos de cristal porque dizem que querem fazer colares de diamantes para a mãe. God! Quando acabo de limpar os vidros já o nudista com poupa abrilhantada está em cima da mesa a saltar para cima da fruteira e a lançar as bananas contra a irmã. Esta, que não é nada ingénua e não se deixa amedrontar, pega em uvas D. Maria (a minha sobremesa) e espalha-as nas calças do irmão enquanto lhe dá socos nas pernas tipo Myke Tyson em auge de carreira. O Zé continua impávido e sereno e começa a fritar algo que explode num dos bicos do fogão e espalha gordura pelo tecto todo. Os miúdos começam a fazer sirenes dos bombeiros e eu vou tentar perceber o que começou o fogo. Afinal o Zé decidiu fritar alface crua porque pensava que os "peixinhos da horta" se faziam assim. Sim senhor, promissor. O terrorista com uvas nos mini-boxers invade a dispensa e começa a espalhar um pacote inteiro de farinha Maizena pelo chão e a saltar como um louco possuído por cima de tudo. A cozinha fica encoberta por um manto de pó intenso e o Zé grita do outro lado do balcão que já está a cozinhar o prato principal. A terrorista diz que gosta mais da farinha Branca de Neve porque vêm sempre sete anões lá dentro. Outra futura louca e gestora de contas milionárias na Euronext. Sai mesmo ao pai. O terrorista branquinho diz que não gosta de anões porque são feios e parecem doentes e que prefere o Alf e os Transformers. Ora aí está um dos meus. Vai para activista político famoso e faminto. O Zé diz que já está quase pronto e começa a colocar a comida no prato. Os miúdos gritam de excitação mas eu só vejo batatas fritas de pacote. Ele diz que podemos começar a comer e os miúdos devoram tudo num instante sem talheres sequer. As batatas fritas apenas. Nada mais. "Oh Zé, e o resto?", digo eu com um sorriso pálido. "O resto é fondue de queijo!". Vão adorar!". Os miúdos olham para mim enquanto ele vai buscar a frigideira com a vela para fritarmos os pedaços de Gruyère e Emmental mas pensam que é um bolo de aniversário e apagam o fogo com dois copos de sumo de toranja natural inteiros. Três vezes. Quando finalmente as convencemos que os bolos são geralmente mais coloridos e fofos que um tacho de cobre esmaltado a arder ficam deliciadas. Rimo-nos todos com a piada e o Zé começa a passar os garfos. Eu fico à espera dos pedaços de queijo mas o Zé não percebe. As crianças olham para mim na ânsia de alguma revelação bíblica mas não me sai nada de jeito.
"Oh Zé, onde é que está o queijo?".
"Onde é que haveria de estar? Dentro do tacho a fritar desde há meia hora. Já deve estar estaladiço e pronto a comer!"
As crianças levantam-se da cadeira e preparam-se para mergulhar os garfos com força. Eu penso melhor e ligo para a Pizza-Hut.
Quando chego pelas 19.00 PM em ponto ele já está de avental e os miúdos estão em festa. O nudista-terrorista hoje está muito bem vestido de pijama do Snoopy e cabelo com brilhantina (é pasta de dentes de mentol que a irmã despejou pela cabeça dele à tarde). A terrorista cabeluda hoje está também bem disposta e calça uns Jimmy Choo da mãe aos quais já arrancou uma das presilhas e cortou um dos saltos com a tesoura da Barbie Cabeleireira. Começamos lindamente. O Zé anda de um lado para o outro e tira dezenas de taças e pratos sem qualquer sentido prático, Muda-os do balcão para a mesa e vice-versa e os miúdos pensam que é um jogo e partem metade no chão. Depois começam a partir os copos de cristal porque dizem que querem fazer colares de diamantes para a mãe. God! Quando acabo de limpar os vidros já o nudista com poupa abrilhantada está em cima da mesa a saltar para cima da fruteira e a lançar as bananas contra a irmã. Esta, que não é nada ingénua e não se deixa amedrontar, pega em uvas D. Maria (a minha sobremesa) e espalha-as nas calças do irmão enquanto lhe dá socos nas pernas tipo Myke Tyson em auge de carreira. O Zé continua impávido e sereno e começa a fritar algo que explode num dos bicos do fogão e espalha gordura pelo tecto todo. Os miúdos começam a fazer sirenes dos bombeiros e eu vou tentar perceber o que começou o fogo. Afinal o Zé decidiu fritar alface crua porque pensava que os "peixinhos da horta" se faziam assim. Sim senhor, promissor. O terrorista com uvas nos mini-boxers invade a dispensa e começa a espalhar um pacote inteiro de farinha Maizena pelo chão e a saltar como um louco possuído por cima de tudo. A cozinha fica encoberta por um manto de pó intenso e o Zé grita do outro lado do balcão que já está a cozinhar o prato principal. A terrorista diz que gosta mais da farinha Branca de Neve porque vêm sempre sete anões lá dentro. Outra futura louca e gestora de contas milionárias na Euronext. Sai mesmo ao pai. O terrorista branquinho diz que não gosta de anões porque são feios e parecem doentes e que prefere o Alf e os Transformers. Ora aí está um dos meus. Vai para activista político famoso e faminto. O Zé diz que já está quase pronto e começa a colocar a comida no prato. Os miúdos gritam de excitação mas eu só vejo batatas fritas de pacote. Ele diz que podemos começar a comer e os miúdos devoram tudo num instante sem talheres sequer. As batatas fritas apenas. Nada mais. "Oh Zé, e o resto?", digo eu com um sorriso pálido. "O resto é fondue de queijo!". Vão adorar!". Os miúdos olham para mim enquanto ele vai buscar a frigideira com a vela para fritarmos os pedaços de Gruyère e Emmental mas pensam que é um bolo de aniversário e apagam o fogo com dois copos de sumo de toranja natural inteiros. Três vezes. Quando finalmente as convencemos que os bolos são geralmente mais coloridos e fofos que um tacho de cobre esmaltado a arder ficam deliciadas. Rimo-nos todos com a piada e o Zé começa a passar os garfos. Eu fico à espera dos pedaços de queijo mas o Zé não percebe. As crianças olham para mim na ânsia de alguma revelação bíblica mas não me sai nada de jeito.
"Oh Zé, onde é que está o queijo?".
"Onde é que haveria de estar? Dentro do tacho a fritar desde há meia hora. Já deve estar estaladiço e pronto a comer!"
As crianças levantam-se da cadeira e preparam-se para mergulhar os garfos com força. Eu penso melhor e ligo para a Pizza-Hut.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
A Catarina quer ser uma mulher moderna. Muito moderna mesmo...
A Catarina quer dar uma volta de 360 graus à sua vida. Quer girar sem parar e parecer outra. Renascer. Virar um novo ser. Desaparecer e re-aparecer como nova. Como única. Como elegante. Tudo isto numa trintona enxuta que é booker numa agência de modelos internacional, não engorda um grama com 50 Magnum de Amêndoas de seguida e que tem um cabelo louro tipo Rapunzel que nem precisa de pentear. Nem sequer secar. Nunca. Uma diva louca e hirta, por isso. Mas a Catarina é uma diva de ideias fixas e isto não lhe sai da cabeça há meses. Quer ser cool outra vez, edgy, excitante e imprevisível. Deve ser por isso que me convida para uma sessão de compras ao final da tarde num Stock Out na Baixa que mistura vintage e retro nos mesmos caixotes cheios de pó e etiquetas trocadas.
Assim que chegamos, a Catarina vira um personagem de um filme Manga Japonês e começa a saltar para cima das caixas todas e a dar encontrões nas outras clientes igualmente desesperadas. Gera-se o pânico inicial, ouvem-se gritos de guerra mas parece que é normal nestas situações de "Tudo a 10 Euros". Incluindo roupa interior e sapatos usados. A Catarina pega em dezenas de blusas e mini-saias, alguns casacos de cabedal e pelo menos três cintos de pele de cobra rosa-choque. Quando consegue empilhar tudo num dos braços dirige-me para um dos gabinetes de prova para eu aprovar / reprovar cada look. E aí vêm eles:
Assim que chegamos, a Catarina vira um personagem de um filme Manga Japonês e começa a saltar para cima das caixas todas e a dar encontrões nas outras clientes igualmente desesperadas. Gera-se o pânico inicial, ouvem-se gritos de guerra mas parece que é normal nestas situações de "Tudo a 10 Euros". Incluindo roupa interior e sapatos usados. A Catarina pega em dezenas de blusas e mini-saias, alguns casacos de cabedal e pelo menos três cintos de pele de cobra rosa-choque. Quando consegue empilhar tudo num dos braços dirige-me para um dos gabinetes de prova para eu aprovar / reprovar cada look. E aí vêm eles:
- Colegial marota procura homem das obras com ombros bem proporcionados e anca larga para cinto de utensílios: Aprovado
- Viúva solteira que não gosta de peneira em busca de homem solitário e brincalhão depois da meia-noite: Aprovado
- Secretária com tendências Ninjo-Culinárias cortantes em busca de prazer redutor com um administrador invejado: Reprovado
- Ajudante de limpeza em fábrica de cortumes em busca de dançarino de milongas na Praça da Alegria: Aprovado
- Cozinheira part-time e vitrinista curiosa interessada em homem com barba por fazer ao Domingo: Aprovado
- Metódica compulsiva com paixão por livros policiais em busca de militar confuso: Aprovado
- Cantora em final de carreira e compradora compulsiva de Evax Tanga Girls em promoção no Minipreço: Reprovado
- Sindicalista em final de carreira com um marido coxo que gosta de Crêpes Suzette e fondue de queijo: Aprovado
domingo, 1 de agosto de 2010
A D. Benvinda contra-ataca. Com arma branca, no entanto...
A Maria diz que até hoje, e desde que me conhece, ainda não percebeu porque é que eu ando de autocarro em Lisboa. Ou de metro. Mas o metro não a choca tanto porque agora já chega ao Rato onde ela vai à Taróloga e também a Cabo Ruivo onde está a sede da empresa do marido. O autocarro é que não. Especialmente os meus autocarros preferidos, o 28 e o 44. E seguramente não iria perceber ou concordar com o facto de eu hoje ter optado pelo 36 que apanhei no Rossio para o Saldanha para ir comprar palitos de la reine à Versailles. Seguramente estaria contra. Sem qualquer argumento, naturalmente.
E a viagem até estava a ser curta e sem nada para contar até que na Av. da Liberdade entra a D. Benvinda. Eu nem dei por isso até que ela me abraçou efusivamente e quase me beija na boca com uma travagem brusca. Diz que está muito feliz de me ver e que até já tinha pensado em mim quando estava a ver o Malato na televisão nesta Sexta-Feira. E quando viu a final do "Achas que sabes dançar?". Adiante. Sentou-se então confortavelmente ao meu lado e perguntou de imediato pela minha amiga Maria. Perguntou se ela já tinha encontrado a ladra dos sapatos. Se ela ainda está casada. Se ela gosta de fardas justas ao corpo nos militares musculados. Eu digo que não, que sim e que sim e sorrio. Ela não desiste da conversa e dispara: "O Sr. Dr. ainda vai ter que ir buscá-la outra vez à Gimnaestreada ou lá como se chama o Spra onde ela faz a minicute. Ou pedricure. Isto está cheio de larápios e vai ficar pior com a crise do mercado nobiliárquico!". Inocentemente, corrijo apenas a última palavra e digo-lhe que ela se calhar quer dizer "imobiliário". Mas ela arrasta a asa para o diccionário e diz que não. Que o problema do país é que está a perder os nobres todos. "Já não há duquesias e condensias, é o que lhe digo. Isto agora é só drogados e arrumadores e lixo. E até o lixo já foi mais compostinho!". Diz que é por isso que é contra a reciclagem porque sabe que eles juntam tudo no mesmo saco ao final do dia (tem um primo que trabalha nisso há 5 anos e que deita tudo fora), e contra os políticos todos sem excepção que permitem os arrumadores lá nas ruas do bairro a estacionar a mini-van do cunhado que tem um talho em Pirescouxe. Diz, no entanto, que o Jaime Gama é muito bonito mas que não pode dizer nada disso ao marido que ele não gosta. Diz também que é a favor da tourada na Catalunha e que gosta de farturas nas festas populares do S. António. Das grandes, diz ela. Com muito açúcar e a queimar. Mas que não come à frente do marido que ele também não gosta disso. Nem o filho. Eu digo que também gosto de farturas e ela saca da mala metade de uma embrulhada em papel de jornal. A sério. Do S. João no Porto que a irmã lhe mandou pelo correio. Diz que não me vai dar a provar mas que a fartura ainda está boa. Mas não quer que eu passe mal por causa dela. Ou da irmã no Porto que é uma santa e tem visões com o Marechal Spínola. Eu agradeço tanta preocupação mas ela diz que com ela ninguém fica doente. Só a nora mas ela diz que essa nem com cogumelos do pinhal do tio que vive em Condeixa-a-Nova lá vai. Adiante. Quando estamos a chegar ao Marquês do Pombal tira um livro da mala e diz que anda a ler um romance muito bom do Mirolan Kindera. Diz que o homem é Checostrolovaco mas que escreve muito bem. E que a escrita até se parece com o título do livro. Diz que é sobre a insustentável lenteza do ser. Eu digo que talvez seja leveza mas ela diz que não, que o livro é muito lento. Mas bom. Ela diz que foi a D. Benilde lá do bairro que lhe deu. Vinha num jornal ao domingo, diz ela. E com um DVD. Mas o DVD ela não percebeu lá muito bem porque falavam em estrangeiro do princípio ao fim e o filho que é comando e um machão não lhe explicou as teclas todas do aparelho. Eu digo que já li o livro há muito tempo e que já nem me lembro bem da história. Ela pega na fartura, dá uma trincadela e abre o livro mais ou menos pela página 86. Diz que não há nada que saber. Ele é comunista. Ela é de boas famílias mas gosta de artistas com fome. O filho vai para um convento no final. Eu não me lembro nada desta parte mas ela diz que sabe ler nas entrelinhas. Diz que este Mirlan Kindera também se teve de exilar em Paris porque ninguém queria ler os livros lá na terra dele. "Era uma praga Sr. Dr. Uma praga, digo-lhe eu!". E o autocarro chega finalmente ao Saldanha.
E a viagem até estava a ser curta e sem nada para contar até que na Av. da Liberdade entra a D. Benvinda. Eu nem dei por isso até que ela me abraçou efusivamente e quase me beija na boca com uma travagem brusca. Diz que está muito feliz de me ver e que até já tinha pensado em mim quando estava a ver o Malato na televisão nesta Sexta-Feira. E quando viu a final do "Achas que sabes dançar?". Adiante. Sentou-se então confortavelmente ao meu lado e perguntou de imediato pela minha amiga Maria. Perguntou se ela já tinha encontrado a ladra dos sapatos. Se ela ainda está casada. Se ela gosta de fardas justas ao corpo nos militares musculados. Eu digo que não, que sim e que sim e sorrio. Ela não desiste da conversa e dispara: "O Sr. Dr. ainda vai ter que ir buscá-la outra vez à Gimnaestreada ou lá como se chama o Spra onde ela faz a minicute. Ou pedricure. Isto está cheio de larápios e vai ficar pior com a crise do mercado nobiliárquico!". Inocentemente, corrijo apenas a última palavra e digo-lhe que ela se calhar quer dizer "imobiliário". Mas ela arrasta a asa para o diccionário e diz que não. Que o problema do país é que está a perder os nobres todos. "Já não há duquesias e condensias, é o que lhe digo. Isto agora é só drogados e arrumadores e lixo. E até o lixo já foi mais compostinho!". Diz que é por isso que é contra a reciclagem porque sabe que eles juntam tudo no mesmo saco ao final do dia (tem um primo que trabalha nisso há 5 anos e que deita tudo fora), e contra os políticos todos sem excepção que permitem os arrumadores lá nas ruas do bairro a estacionar a mini-van do cunhado que tem um talho em Pirescouxe. Diz, no entanto, que o Jaime Gama é muito bonito mas que não pode dizer nada disso ao marido que ele não gosta. Diz também que é a favor da tourada na Catalunha e que gosta de farturas nas festas populares do S. António. Das grandes, diz ela. Com muito açúcar e a queimar. Mas que não come à frente do marido que ele também não gosta disso. Nem o filho. Eu digo que também gosto de farturas e ela saca da mala metade de uma embrulhada em papel de jornal. A sério. Do S. João no Porto que a irmã lhe mandou pelo correio. Diz que não me vai dar a provar mas que a fartura ainda está boa. Mas não quer que eu passe mal por causa dela. Ou da irmã no Porto que é uma santa e tem visões com o Marechal Spínola. Eu agradeço tanta preocupação mas ela diz que com ela ninguém fica doente. Só a nora mas ela diz que essa nem com cogumelos do pinhal do tio que vive em Condeixa-a-Nova lá vai. Adiante. Quando estamos a chegar ao Marquês do Pombal tira um livro da mala e diz que anda a ler um romance muito bom do Mirolan Kindera. Diz que o homem é Checostrolovaco mas que escreve muito bem. E que a escrita até se parece com o título do livro. Diz que é sobre a insustentável lenteza do ser. Eu digo que talvez seja leveza mas ela diz que não, que o livro é muito lento. Mas bom. Ela diz que foi a D. Benilde lá do bairro que lhe deu. Vinha num jornal ao domingo, diz ela. E com um DVD. Mas o DVD ela não percebeu lá muito bem porque falavam em estrangeiro do princípio ao fim e o filho que é comando e um machão não lhe explicou as teclas todas do aparelho. Eu digo que já li o livro há muito tempo e que já nem me lembro bem da história. Ela pega na fartura, dá uma trincadela e abre o livro mais ou menos pela página 86. Diz que não há nada que saber. Ele é comunista. Ela é de boas famílias mas gosta de artistas com fome. O filho vai para um convento no final. Eu não me lembro nada desta parte mas ela diz que sabe ler nas entrelinhas. Diz que este Mirlan Kindera também se teve de exilar em Paris porque ninguém queria ler os livros lá na terra dele. "Era uma praga Sr. Dr. Uma praga, digo-lhe eu!". E o autocarro chega finalmente ao Saldanha.
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