terça-feira, 26 de outubro de 2010

Os relógios dos homens podem ser peças estranhas de compreender à vista desarmada...

Os homens não usam jóias. Melhor ainda. Os homens não são nenhuma jóia cintilante. Podem ter algum brilho mas nada que ofusque o reluzir natural de uma mulher de sonho. Esta é pelo menos a versão filosófica-nihilista da minha tia Mimi. Que é uma sábia com experiência no mundo das plumas e lantejoulas. Não que seja Drag-Queen. Pelo menos nunca antes da hora sagrada do almoço. A minha tia acha que os homens que usam jóias ou são surfistas balineses ou gostam demasiado do Conan o Bárbaro. Que o imaginam nú à noite depois dos debates políticos na SIC Notícias com o Mário Crespo. Eu tento contrariar esta versão simplista e digo que o Conan até lançou a carreira de muitos actores de terceira categoria mas a minha tia não vai na conversa. Adiante. A minha tia não tem parcimónia e não usa jóias. Nunca usou. Excepto o anel de casamento, mas esse fica sempre na cómoda guardado a sete chaves. Deve ser por isso que olha para cada relógio do Zé Eduardo como se fosse uma árvore de Natal do Ikea. Nada ecológica, por isso. A minha tia é uma pessoa iluminada (por vezes já a encontrámos com alguns cristais brilhantes na cabeça que brilham no escuro) e precisa de ser levada a sério.
Mas o Zé não percebe e diz que ela está é gágá. A Mimi pode estar surda (já não consegue ouvir Frank Sinatra como antigamente) mas por momentos começa a cantarolar a música "Alejandro, Alejandro" como um Diva e como a Lady que é. Gágá but fabulous. Enfim, confusões sobre relógios de pulso e opiniões sobre o Conan o Bárbaro, era só o que me faltava. Eu que já tinha que opinar sobre o conflito no Burundi e sobre a seca na Califórnia.
Eu digo ao Zé que também não percebo a mania que ele tem por comprar modelos cada vez mais esquisitos e com formas estranhas. Uns são cronógrafos que vão até aos 10.000 pés submarinos (who cares?) e outros dão as horas certas em Muscate e Kuala Lumpur (UAU).
O Zé compra um relógio por mês e diz que não percebe porque é que eu não faço o mesmo. Tirando a questão monetária (insignificante), a verdade é que o único relógio que eu gosto é mesmo o da Hermès do Zé que roubo de vez em quando. Ele sabe perfeitamente e até acha piada às minhas desculpas tipo "encontrei-o na tua casa-de-banho ou caiu da tua mala no último almoço na Versailles". Uma vez disse-lhe que ele me tinha oferecido o relógio nos anos quando tinha bebido três garrafas de Perrier com Vodka e tinha começado a cantar como a Madonna no Evita mas ele não acreditou muito na história e lá tive que voltar ao meu Swatch com 10 anos e em vias de extinção.
Aqui para nós acho até que ele o deixa cair nas minhas mãos ocasionalmente e de propósito para não ter de justificar mais um relógio lá em casa à mulher e aos dois pirralhos dançarinos que querem comprar os bonecos todos da Rua Sésamo menos o Cookie Monster porque a comer bolachas e a espalhar tudo no chão ninguém os bate. A mulher ainda não quer bonecos da Rua Sésamo, que se saiba. Para lá caminha.
Aliás, por falar em bonecos, os meus sobrinhos preferidos até me ofereceram um relógio em forma de personagem de fantasia uma vez. Era do Mickey e tinha vindo num Happy Meal da Disneyland Paris. Mas a oferta tinha brinde. Vinha com uma bracelete rosa-choque e com um pedaço de bolo já mastigado colado no vidro. Às vezes uso-o em ocasiões oficiais tipo congressos ou recepções em algumas embaixadas. Tem sido um sucesso. Já me perguntaram a marca várias vezes. Respondo sempre a mesma coisa:
"Takashi Murakami para a Vuitton. Edição Especial. Vinha com o meu bolo de aniversário em forma de Conan o Bárbaro". Nunca falha.

domingo, 12 de setembro de 2010

As pessoas sérias são uma chatice...

O Zé Eduardo diz que anda muito preocupado. Outra vez. Nenhuma novidade, portanto. A última vez que o Zé andou muito preocupado teve algo que ver com a queda do mercado de capitais na Índia. Ou a quebra no preço do trigo na Rússia. Algo parecido. Quando nos encontramos para almoçar temo o pior. Temo saber em primeira mão que o mercado imobiliário na Bulgária já teve melhores dias ou que há grandes variações nos preços dos iogurtes de morango com poucas calorias na Suíça. Parece que não. Como detesto iogurtes teria de fingir uma enorme perplexidade e tristeza intransigente. Ainda bem. Afinal o Zé tem algo muito sério que partilhar à mesa. E não é apenas a salada de requeijão, tomate seco e agrião que eu como quase por inteiro (o Zé está de dieta desde que encontrou um Michelin de 5cm). Parece que o Zé já não é levado a sério pelo restrito grupo de trabalhadores que o admiravam como um Deus no Olimpo dos investidores de risco. Como um Zeus na berlinda. Como um berlinde na mão da Cassiopeia. Divago. O Zé diz que anda muito preocupado porque desde que começou a ser um bom patrão já ninguém o respeita. Desde que cumprimenta toda a gente e ri com piadas fáceis no café enquanto discute o Dow Jones ninguém lhe liga nenhuma. Que já ninguém o convida para fins-de-semana a navegar nas Berlengas ou para churrascos em Ponte de Lima. O Zé está em pânico. E diz que não sabe o que fazer. Eu, que até fui responsável por promover a sua atitude mais dócil no trabalho, tenho de admitir que também estou perdido e que nunca percebi esta obsessão Portuguesa pela seriedade e maquiavelismo dos nossos líderes de topo. Um líder em Portugal nunca pode sorrir. Nunca pode ser divertido. Nunca pode ser descontraído. Nem gostar de ler em demasia ou de ir ao cinema com frequência. Muito menos aos ciclos de cinema Francês no Nimas ou a eventos de moda de rua. E de ler a Máxima todos os meses. Ocasionalmente a DIF e a Parq. Os líderes em Portugal têm de ser sisudos, falar alto ao telemóvel que nunca deixam em paz e dar murros na mesa quando não gostam do que ouvem. Nunca estão presentes para uma reunião ou uma troca de impressões casual e bombardeiam toda a gente com emails desde casa e SMS desde Praga ou Berlim a meio da noite. Para provar que estão atentos e que trabalham muito. Até de noite. Os líderes em Portugal desconfiam também de quem é feliz e gosta de quadros com golfinhos ou pastores-alemães no escritório e a fotografia ocasional dos sobrinhos de férias no Algarve e exigem sangue, suor e lágrimas. Em fotografias do Helmut Newton, no entanto. Muito másculas. Ou recortes do Record e da Bola, nunca do Financial Times. Os líderes em Portugal têm de ter sempre uma opinião e nunca se enganam ou duvidam da justiça, justeza e singularidade das suas opções e visões estratégicas. Não falam muitas línguas porque basta saber o básico para se fazer entender. Numa lavandaria em Hong Kong ou num restaurante em Nápoles, provavelmente. Os líderes em Portugal são contra o caos e preferem o equilíbrio. O consenso. A parcimónia. O pânico. O medo. A inveja. Enfim, os líderes em Portugal são uma chatice. Uma seca como só em África. Têm restaurantes chatos e enfadonhos onde se reúnem, têm lojas onde compram camisas largas para disfarçar a barriga, têm ginásios onde disfarçam que adoram os vídeos da Jane Fonda e a própria Jane Fonda. Os nossos líderes têm de ser temidos e nunca adorados. Têm de gerar receio e pasmo, nunca gosto imediato ou paixão. O Zé Eduardo quer voltar a ser assim. O melhor líder do mundo. Temido, invejado, idolatrado por uma geração acabada de sair da faculdade que não percebe ao princípio mas cedo entra no jogo. E admira no futuro próximo. E promoverá com afinco. O Zé Eduardo diz também que está a pensar em deixar de usar creme pós-barbear de lavanda e rosmaninho da Patyka e passar para o After-Shave com álcool da Aramis de sempre. Os líderes em Portugal têm medo de ter pele macia e de cheirarem bem demais. Deve ser por isso que na sua grande maioria sonham com o Brad Pitt. Não em ser o Brad Pitt para as suas secretárias em pânico / aversão / incredulidade ao estilo Angelina Jolie. Sonham com o Brad Pitt no jacuzzi. Acontece a todos os líderes. Menos aos que se riem nas reuniões com os disparates de um Plano de Marketing ou com os Relatórios de Contas sem sentido. Brad Pitt, you´re welcome…

domingo, 5 de setembro de 2010

Os Gurus de auto-ajuda precisam do nosso apoio ocasional...

A Inês diz que já não passa sem os conselhos do Guru Indiano (parece que de Varanasi mas a Inês não se lembra muito bem) que uma amiga recomendou no Verão passado. Deve ter sido mesmo há muito tempo porque o Verão este ano veio para ficar para mal dos meus pecados. A Inês diz que o Guru é um santo e que mudou completamente a visão que ela tem do mundo. E da vida. E dos cães. E dos colegas de trabalho. Também da comida macrobiótica. Enfim, o Guru mudou a vida da Inês. Eu olho e oiço desconfiado este tipo de discurso apaixonado porque a Inês muda de vida (e de visão sobre a mesma) a cada três meses. A Inês já viveu no tempo da Maria Antonieta, já foi soldado (homem) na corte do Henrique VIII, já foi corretora de seguros em Bombaim no século XIX e já bordou saias na Escandinávia dos anos 30. A Inês, que acredita em reencarnações como na papa Milupa (de que era fã isenta) e no fermento para o pão multi-cereais que o Guru recomenda que ela compre no Celeiro, já viveu muito. Diz-se. Eu acredito. E subscrevo a vida na Corte Inglesa (que não no El Corte Inglés) sob o Henrique VIII (também lá estive, obviamente na nobreza iluminada e dotado de grandes recursos financeiros e uma veia para o mecenato artístico).
Mas agora é diferente, diz a Inês. Este Guru Indiano provou-lhe com um método infalível que ela não só já viveu muitas vezes como ainda vai viver muitas mais. É por isso que precisa de purificar-se. E rapidamente, diz ele. Eu pergunto como e quando e ela responde como se estivesse a preencher um questionário de Proust:
"Três colheres de xarope de seiva de pinheiro-manso à primeira hora da manhã, duas colheres de essência de rosa e gerânio às 17.00 PM misturada com chá-verde amargo, um banho de água fria às 21.00 PM seguido de três horas de meditação em posição flor-de-lótus sobre o soalho de madeira. Tem de ser sobre madeira porque o mármore não conduz bem a energia", diz ela.
A minha amiga parece convencida e diz que é outra mulher. Eu acho-a igual a ontem mas ela diz que esta purificação pode demorar anos. Talvez décadas. É uma purificação por fases. Por etapas. Como um Time-Share. A Inês diz também que o Guru Indiano é o mesmo que acompanhou os Beatles numa das suas visitas à Índia nos anos sessenta. Eu não vejo grande relevância nesta publicidade gratuita porque não só não gosto dos Beatles (que sacrilégio) como acho que eles ainda ficaram piores depois do retiro espiritual na Índia. A Inês diz que o Guru recomendou também que ela falasse com os animais que tem em casa como se tratassem de mais um elemento da família, e que acariciasse cada manhã cinco pedras de quartzo como se fosse um amante muito querido. Já estou a ver. Pagava para filmar a cena e vender ao Christophe Honoré. A Inês a gritar com os peixes no aquário e a exigir mais dinheiro como faz ao pai. A Inês a ralhar de forma cáustica e desorganizada com a Yorkshire Terrier como faz como a irmã. A Inês a olhar de forma sarcástica para o porquinho da Índia (curiosamente da terra-natal do Guru) como faz com a sobrinha. Ah, e a Inês em pose de diva alemã em suave decadência com roupa interior da Chantelle a acariciar cinco pedras reluzentes na cama como faz com a barba do namorado. Este Guru é mesmo bom. É fantástico até. É um Guru para a vida. Cobra 50 Euros por cada meia-hora e dá consultas no Martim Moniz. Só às Quartas-Feiras, no entanto. Esta semana não consigo lá ir.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Escrever é fácil, segundo Séneca....

A Maria diz que está a pensar escrever um livro. Um romance. De aventuras, provavelmente. Eu, que adoro romances e aventuras de igual forma e sem ordem preferencial, fico muito entusiasmado com a ideia da minha amiga. A Maria diz que parte do romance será inspirado em factos reais e parte substancial em pura invenção criativa. Como se fosse uma revista de tendências de moda Outono-Inverno no Abu-Dhabi ou um guia de televisão por cabo na Eritreia. Mais ou menos. Até aqui nenhuma novidade. Tudo bem. A Maria diz também que escreverá sobre vários personagens sem não os identificar com os nomes reais. Perfeito, digo eu. E até inteligente porque evita processos judiciais. Ou presumíveis ataques no Metro ou na secção de fruta e verduras frescas do supermercado. Provavelmente na secção de congelados também. A Maria diz ainda que vai introduzir um móbil de crime passional na história. Fantástico. Morte e amor de mãos dadas no recreio. E que talvez aborde alguma situação experimental da crise financeira mundial. Excelente e oportuno. Diz também que vai enquadrar alguns capítulos na terceira pessoa para introduzir um elemento de liberdade linguística. A Maria é um génio. Watch up Raymond Carver, Maria is gonna get you. E pergunta-me se faz sentido criar alguma tensão erótica entre os protagonistas. Eu, que sou sempre apologista de tensões e ainda por cima de forte cariz carnal, apoio a iniciativa a cem por cento. Diz que até já teve uma ideia muito clara para a capa. Em tons negros de novela policial espanhola ou num cinzento pálido qual literatura de cordel escocesa. Extraordinário. Texto brilhante e capa opaca. Apoio totalmente.
É então que pergunto de forma acidental e quase ingénua sobre que tema precisamente falará o livro. E qual o título, já agora. A Maria olha-me de soslaio e eu temo o pior. Será que ela vai arriscar abordar o primeiro divórcio e a pensão milionária negociada pelo advogado de renome? Que se tornou no seu segundo marido? Que se tornou no fiador da casa em Puerto Banús que explodiu o ano passado depois da empregada se ter esquecido de desligar o botão do gás na cozinha? Que escreveu também ele dois livros de normas sobre jardinagem de Bonsai na Osaka do segundo Shogun? Que acha que a Maria já o traiu com o professor de ténis? Que acha que a Maria dorme demais? Que acha que a Maria compra demasiados sapatos. A Maria ri-se e diz que não. Que ele já aceitou o facto dos sapatos repetidos e nunca usados e que já deixou morrer os Bonsai no jardim. E diz que o livro não é sobre o marido. Que aliás nem tem tempo para ler. Diz que o livro é sobre filosofia helénica no tempo de Péricles. E que aborda também algumas questões de deontologia teatral do consulado de Eurípides em Éfeso. Que bom. A Maria agora escreve sobre filosofia. Talvez mesmo até sobre artes plásticas na escola de Esparta. O meu livro sobre Séneca tem concorrência. Tenho de criar uma manobra de diversão. Vou escrever sobre mim. Ou talvez não. Talvez acabe por abordar algo mais prático e próximo. Ou com uma distância calculada. Vou escrever sobre a Maria. Ela ri-se e diz que faço bem. E que quer 50% dos direitos de autor. Ora bolas Maria, assim nunca chego ao break even.

domingo, 29 de agosto de 2010

Sou muito frontal. Fico lindamente de perfil....

Todos nós pertencemos a algum grupo. Alguns a certas confrarias. Outros a clubes privados bastante distintos, talvez até internacionais. Alguns até a seitas misteriosas que adoram pedras da calçada, segundo ouvi dizer. O Zé Eduardo é presidente honorário de cinco clubes muito restrictos aos quais paga quase uma pensão mensal de alimentos (um é o clube de amigos dos agricultores biológicos e ele paga mesmo em alimentos frescos), a Maria tem dez associações às quais pertence de forma activa (de 7 nem se lembra como se tornou sócia mas não faz mal), O Luís Filipe tem clubes de fãs loucas que lhe deixam flores à porta de casa, garrafas de Periquita de 1982 e alguma roupa interior da Chantelle por estrear. Na escola o nosso grupo era composto por 5 elementos (falta a Rosie que hoje faz parte do clube de mulheres casadas com gigantes de 2 metros que jogam Rugby só por acaso e não por uma particular estrutura muscular) e era o grupo mais divertido que poderia existir à face da terra. Ou pelo menos à face do nosso planeta particular de revistas Bravo cujo Alemão ninguém percebia, singles da Madonna em fase True Blue e jogadores de futebol cabeludos e com barba de três dias. Até tínhamos um cão como nos livros da Enid Blyton que se chamava Farrusco, que era do Zé e adorava a Maria (que odiava que ele se babasse literalmente por ela como nenhum homem jamais fez). Tínhamos uma linguagem em código, sinais para tudo e algumas palavras-chave imperceptíveis para pais e professores (e também para alguns psicólogos interessados). Para todos os grupos, e como é tradição, tínhamos um contra-grupo arqui-rival que detestávamos e nos odiava mutuamente. Era constituido por 3 raparigas e um rapaz (não tinham cão e tinham ficado com menos um elemento que se tinha mudado para outra escola e cidade algures no Alentejo profundo depois de ter atirado com muita força um pacote de bolacha-maria à cabeça de outro miúdo no recreio), também tinha uma linguagem de código (muito primitiva no entanto e com alguns rituais Pré-Maias da Rota de Quetzal difíceis de seguir), e que também era objecto de interesse para alguns psicólogos internacionais que até escreveram sobre o tema. Isto é, sobre rituais Pré-Maias na Rota Quetzal, não sobre o nosso grupo rival, que eu tenha lido.
Este grupo era difícil de controlar e muito arisco às nossas movimentações no terreno, iniciativas e discurso pró-activo. Tinha uma líder natural, Ana Maria (nome fictício para evitar represálias) , que era uma boneca de porcelana vampiresca que adorava calçar sapatos com laços de cetim até ao joelho e tinha sempre um colar com uma mini-Tuxa ao pescoço.
Esta líder natural falava de uma forma afectada e dizia cada disparate que nos deixava em pânico cada vez que abria a boca para contar as nossas aventuras secretas à professora.
Eu odiava a Ana Maria e os seus sapatos de laço de cetim. Também odiava que ela fizesse graçolas fáceis com a gaguez juvenil do Luís Filipe e com o cabelo esquisito da Rosie. Com o Zé Eduardo e com a Maria não se metia porque sabia que eles estavam noutra categoria, mas com os outros três membros (e o cão) não havia dia que não causasse um sarilho.
A Ana Maria era daquelas raparigas manipuladoras e falsas-histéricas, muito activa-passiva em versão Mia Farrow para o Woody Allen, muito noiva last minute num filme do Tarantino que desmaia a ver sangue. Uma falsa púdica, portanto. E tinha o maior defeito que existe na minha Bíblia dos defeitos. Era muito frontal, dizia ela. Muito transparente. Dizia as coisas como elas são. Sem contexto, sem malícia, sem fantasia. Uma chata impossível de aturar, em conclusão.
E como tinha a cara angélica de uma Mariel Hemingway em início de carreira ou de uma Greta Garbo em período de recolhimento numa penthouse no Upper East Side de NYC, safava-se de tudo com um sorriso infantil e pérfido que fazia questão que nós víssemos no momento da machadada final quando girava o pescoço e nos fazia beicinho de vítima. Ai ai Ana Maria, que bela actriz de cinema mudo na República de Weimar terias tu dado.
Mas não. Afinal a Ana Maria cresceu como todos nós, mudou de turma e grupo, deixou de desejar ardentemente o Zé Eduardo e invejar a Maria, de soltar gracinhas tontas ao Luís Filipe e puxar o cabelo à Rosie até doer. Deixou também de achar estranho que eu adorasse fazer colagens e que gostasse do Sherlock Holmes. E de me dar pontapés por baixo da mesa no refeitório e dizer que era o Carlos. A Ana Maria agora é Directora de Recursos Humanos de uma multinacional de renome e brinca com as carreiras e vidas de outros elementos de grupos distintos e em formação contínua. Sempre frontal e verdadeira, sempre transparente. Sempre correcta e dura. Uma directora infalível e comprometida com o seu trabalho. A Rosie diz que a viu nas Amoreiras ao segundo dia de estar em Lisboa e que ela parou para ver de perto e de alto a baixo o marido de 2 metros com uma tatuagem Maori na virilha. A Rosie não podia resistir e respondeu à letra ao olhar transparente da líder da Juventude Tuxiana:
"You know what, you´re a clown!". Deu meia volta com o seu jogador gigante que não tinha percebido nada da cena mas ainda ouviu a Ana Maria gritar:
"Posso ser um clone mas o teu marido não é para ti!".
Ai ai Ana Maria. Transparente, frontal e profundamente burra. O teu Inglês nunca foi muito bom. Ainda bem que não seguiste uma carreira como tradutora simultânea na ONU.