É então que pergunto de forma acidental e quase ingénua sobre que tema precisamente falará o livro. E qual o título, já agora. A Maria olha-me de soslaio e eu temo o pior. Será que ela vai arriscar abordar o primeiro divórcio e a pensão milionária negociada pelo advogado de renome? Que se tornou no seu segundo marido? Que se tornou no fiador da casa em Puerto Banús que explodiu o ano passado depois da empregada se ter esquecido de desligar o botão do gás na cozinha? Que escreveu também ele dois livros de normas sobre jardinagem de Bonsai na Osaka do segundo Shogun? Que acha que a Maria já o traiu com o professor de ténis? Que acha que a Maria dorme demais? Que acha que a Maria compra demasiados sapatos. A Maria ri-se e diz que não. Que ele já aceitou o facto dos sapatos repetidos e nunca usados e que já deixou morrer os Bonsai no jardim. E diz que o livro não é sobre o marido. Que aliás nem tem tempo para ler. Diz que o livro é sobre filosofia helénica no tempo de Péricles. E que aborda também algumas questões de deontologia teatral do consulado de Eurípides em Éfeso. Que bom. A Maria agora escreve sobre filosofia. Talvez mesmo até sobre artes plásticas na escola de Esparta. O meu livro sobre Séneca tem concorrência. Tenho de criar uma manobra de diversão. Vou escrever sobre mim. Ou talvez não. Talvez acabe por abordar algo mais prático e próximo. Ou com uma distância calculada. Vou escrever sobre a Maria. Ela ri-se e diz que faço bem. E que quer 50% dos direitos de autor. Ora bolas Maria, assim nunca chego ao break even.
Bloguista acidental que não acidentado (ninguém se feriu durante a criação do perfil e conta associada). Pequenas histórias de um quotidiano cheio de surpresas ao virar da esquina. Prémio Pulitzer de escrita criativa durante os últimos dez anos, sem excepção. Recomendado por milhares de escritores e críticos de Kuala Lumpur a Montevideo. Temido por alguns grupos de pressão. Talvez exagere.
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
Escrever é fácil, segundo Séneca....
A Maria diz que está a pensar escrever um livro. Um romance. De aventuras, provavelmente. Eu, que adoro romances e aventuras de igual forma e sem ordem preferencial, fico muito entusiasmado com a ideia da minha amiga. A Maria diz que parte do romance será inspirado em factos reais e parte substancial em pura invenção criativa. Como se fosse uma revista de tendências de moda Outono-Inverno no Abu-Dhabi ou um guia de televisão por cabo na Eritreia. Mais ou menos. Até aqui nenhuma novidade. Tudo bem. A Maria diz também que escreverá sobre vários personagens sem não os identificar com os nomes reais. Perfeito, digo eu. E até inteligente porque evita processos judiciais. Ou presumíveis ataques no Metro ou na secção de fruta e verduras frescas do supermercado. Provavelmente na secção de congelados também. A Maria diz ainda que vai introduzir um móbil de crime passional na história. Fantástico. Morte e amor de mãos dadas no recreio. E que talvez aborde alguma situação experimental da crise financeira mundial. Excelente e oportuno. Diz também que vai enquadrar alguns capítulos na terceira pessoa para introduzir um elemento de liberdade linguística. A Maria é um génio. Watch up Raymond Carver, Maria is gonna get you. E pergunta-me se faz sentido criar alguma tensão erótica entre os protagonistas. Eu, que sou sempre apologista de tensões e ainda por cima de forte cariz carnal, apoio a iniciativa a cem por cento. Diz que até já teve uma ideia muito clara para a capa. Em tons negros de novela policial espanhola ou num cinzento pálido qual literatura de cordel escocesa. Extraordinário. Texto brilhante e capa opaca. Apoio totalmente.
domingo, 29 de agosto de 2010
Sou muito frontal. Fico lindamente de perfil....
Todos nós pertencemos a algum grupo. Alguns a certas confrarias. Outros a clubes privados bastante distintos, talvez até internacionais. Alguns até a seitas misteriosas que adoram pedras da calçada, segundo ouvi dizer. O Zé Eduardo é presidente honorário de cinco clubes muito restrictos aos quais paga quase uma pensão mensal de alimentos (um é o clube de amigos dos agricultores biológicos e ele paga mesmo em alimentos frescos), a Maria tem dez associações às quais pertence de forma activa (de 7 nem se lembra como se tornou sócia mas não faz mal), O Luís Filipe tem clubes de fãs loucas que lhe deixam flores à porta de casa, garrafas de Periquita de 1982 e alguma roupa interior da Chantelle por estrear. Na escola o nosso grupo era composto por 5 elementos (falta a Rosie que hoje faz parte do clube de mulheres casadas com gigantes de 2 metros que jogam Rugby só por acaso e não por uma particular estrutura muscular) e era o grupo mais divertido que poderia existir à face da terra. Ou pelo menos à face do nosso planeta particular de revistas Bravo cujo Alemão ninguém percebia, singles da Madonna em fase True Blue e jogadores de futebol cabeludos e com barba de três dias. Até tínhamos um cão como nos livros da Enid Blyton que se chamava Farrusco, que era do Zé e adorava a Maria (que odiava que ele se babasse literalmente por ela como nenhum homem jamais fez). Tínhamos uma linguagem em código, sinais para tudo e algumas palavras-chave imperceptíveis para pais e professores (e também para alguns psicólogos interessados). Para todos os grupos, e como é tradição, tínhamos um contra-grupo arqui-rival que detestávamos e nos odiava mutuamente. Era constituido por 3 raparigas e um rapaz (não tinham cão e tinham ficado com menos um elemento que se tinha mudado para outra escola e cidade algures no Alentejo profundo depois de ter atirado com muita força um pacote de bolacha-maria à cabeça de outro miúdo no recreio), também tinha uma linguagem de código (muito primitiva no entanto e com alguns rituais Pré-Maias da Rota de Quetzal difíceis de seguir), e que também era objecto de interesse para alguns psicólogos internacionais que até escreveram sobre o tema. Isto é, sobre rituais Pré-Maias na Rota Quetzal, não sobre o nosso grupo rival, que eu tenha lido.
Este grupo era difícil de controlar e muito arisco às nossas movimentações no terreno, iniciativas e discurso pró-activo. Tinha uma líder natural, Ana Maria (nome fictício para evitar represálias) , que era uma boneca de porcelana vampiresca que adorava calçar sapatos com laços de cetim até ao joelho e tinha sempre um colar com uma mini-Tuxa ao pescoço.
Esta líder natural falava de uma forma afectada e dizia cada disparate que nos deixava em pânico cada vez que abria a boca para contar as nossas aventuras secretas à professora.
Eu odiava a Ana Maria e os seus sapatos de laço de cetim. Também odiava que ela fizesse graçolas fáceis com a gaguez juvenil do Luís Filipe e com o cabelo esquisito da Rosie. Com o Zé Eduardo e com a Maria não se metia porque sabia que eles estavam noutra categoria, mas com os outros três membros (e o cão) não havia dia que não causasse um sarilho.
A Ana Maria era daquelas raparigas manipuladoras e falsas-histéricas, muito activa-passiva em versão Mia Farrow para o Woody Allen, muito noiva last minute num filme do Tarantino que desmaia a ver sangue. Uma falsa púdica, portanto. E tinha o maior defeito que existe na minha Bíblia dos defeitos. Era muito frontal, dizia ela. Muito transparente. Dizia as coisas como elas são. Sem contexto, sem malícia, sem fantasia. Uma chata impossível de aturar, em conclusão.
E como tinha a cara angélica de uma Mariel Hemingway em início de carreira ou de uma Greta Garbo em período de recolhimento numa penthouse no Upper East Side de NYC, safava-se de tudo com um sorriso infantil e pérfido que fazia questão que nós víssemos no momento da machadada final quando girava o pescoço e nos fazia beicinho de vítima. Ai ai Ana Maria, que bela actriz de cinema mudo na República de Weimar terias tu dado.
Mas não. Afinal a Ana Maria cresceu como todos nós, mudou de turma e grupo, deixou de desejar ardentemente o Zé Eduardo e invejar a Maria, de soltar gracinhas tontas ao Luís Filipe e puxar o cabelo à Rosie até doer. Deixou também de achar estranho que eu adorasse fazer colagens e que gostasse do Sherlock Holmes. E de me dar pontapés por baixo da mesa no refeitório e dizer que era o Carlos. A Ana Maria agora é Directora de Recursos Humanos de uma multinacional de renome e brinca com as carreiras e vidas de outros elementos de grupos distintos e em formação contínua. Sempre frontal e verdadeira, sempre transparente. Sempre correcta e dura. Uma directora infalível e comprometida com o seu trabalho. A Rosie diz que a viu nas Amoreiras ao segundo dia de estar em Lisboa e que ela parou para ver de perto e de alto a baixo o marido de 2 metros com uma tatuagem Maori na virilha. A Rosie não podia resistir e respondeu à letra ao olhar transparente da líder da Juventude Tuxiana:
"You know what, you´re a clown!". Deu meia volta com o seu jogador gigante que não tinha percebido nada da cena mas ainda ouviu a Ana Maria gritar:
"Posso ser um clone mas o teu marido não é para ti!".
Ai ai Ana Maria. Transparente, frontal e profundamente burra. O teu Inglês nunca foi muito bom. Ainda bem que não seguiste uma carreira como tradutora simultânea na ONU.
Este grupo era difícil de controlar e muito arisco às nossas movimentações no terreno, iniciativas e discurso pró-activo. Tinha uma líder natural, Ana Maria (nome fictício para evitar represálias) , que era uma boneca de porcelana vampiresca que adorava calçar sapatos com laços de cetim até ao joelho e tinha sempre um colar com uma mini-Tuxa ao pescoço.
Esta líder natural falava de uma forma afectada e dizia cada disparate que nos deixava em pânico cada vez que abria a boca para contar as nossas aventuras secretas à professora.
Eu odiava a Ana Maria e os seus sapatos de laço de cetim. Também odiava que ela fizesse graçolas fáceis com a gaguez juvenil do Luís Filipe e com o cabelo esquisito da Rosie. Com o Zé Eduardo e com a Maria não se metia porque sabia que eles estavam noutra categoria, mas com os outros três membros (e o cão) não havia dia que não causasse um sarilho.
A Ana Maria era daquelas raparigas manipuladoras e falsas-histéricas, muito activa-passiva em versão Mia Farrow para o Woody Allen, muito noiva last minute num filme do Tarantino que desmaia a ver sangue. Uma falsa púdica, portanto. E tinha o maior defeito que existe na minha Bíblia dos defeitos. Era muito frontal, dizia ela. Muito transparente. Dizia as coisas como elas são. Sem contexto, sem malícia, sem fantasia. Uma chata impossível de aturar, em conclusão.
E como tinha a cara angélica de uma Mariel Hemingway em início de carreira ou de uma Greta Garbo em período de recolhimento numa penthouse no Upper East Side de NYC, safava-se de tudo com um sorriso infantil e pérfido que fazia questão que nós víssemos no momento da machadada final quando girava o pescoço e nos fazia beicinho de vítima. Ai ai Ana Maria, que bela actriz de cinema mudo na República de Weimar terias tu dado.
Mas não. Afinal a Ana Maria cresceu como todos nós, mudou de turma e grupo, deixou de desejar ardentemente o Zé Eduardo e invejar a Maria, de soltar gracinhas tontas ao Luís Filipe e puxar o cabelo à Rosie até doer. Deixou também de achar estranho que eu adorasse fazer colagens e que gostasse do Sherlock Holmes. E de me dar pontapés por baixo da mesa no refeitório e dizer que era o Carlos. A Ana Maria agora é Directora de Recursos Humanos de uma multinacional de renome e brinca com as carreiras e vidas de outros elementos de grupos distintos e em formação contínua. Sempre frontal e verdadeira, sempre transparente. Sempre correcta e dura. Uma directora infalível e comprometida com o seu trabalho. A Rosie diz que a viu nas Amoreiras ao segundo dia de estar em Lisboa e que ela parou para ver de perto e de alto a baixo o marido de 2 metros com uma tatuagem Maori na virilha. A Rosie não podia resistir e respondeu à letra ao olhar transparente da líder da Juventude Tuxiana:
"You know what, you´re a clown!". Deu meia volta com o seu jogador gigante que não tinha percebido nada da cena mas ainda ouviu a Ana Maria gritar:
"Posso ser um clone mas o teu marido não é para ti!".
Ai ai Ana Maria. Transparente, frontal e profundamente burra. O teu Inglês nunca foi muito bom. Ainda bem que não seguiste uma carreira como tradutora simultânea na ONU.
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