domingo, 1 de agosto de 2010

A D. Benvinda contra-ataca. Com arma branca, no entanto...

A Maria diz que até hoje, e desde que me conhece, ainda não percebeu porque é que eu ando de autocarro em Lisboa. Ou de metro. Mas o metro não a choca tanto porque agora já chega ao Rato onde ela vai à Taróloga e também a Cabo Ruivo onde está a sede da empresa do marido. O autocarro é que não. Especialmente os meus autocarros preferidos, o 28 e o 44. E seguramente não iria perceber ou concordar com o facto de eu hoje ter optado pelo 36 que apanhei no Rossio para o Saldanha para ir comprar palitos de la reine à Versailles. Seguramente estaria contra. Sem qualquer argumento, naturalmente.
E a viagem até estava a ser curta e sem nada para contar até que na Av. da Liberdade entra a D. Benvinda. Eu nem dei por isso até que ela me abraçou efusivamente e quase me beija na boca com uma travagem brusca. Diz que está muito feliz de me ver e que até já tinha pensado em mim quando estava a ver o Malato na televisão nesta Sexta-Feira. E quando viu a final do "Achas que sabes dançar?". Adiante. Sentou-se então confortavelmente ao meu lado e perguntou de imediato pela minha amiga Maria. Perguntou se ela já tinha encontrado a ladra dos sapatos. Se ela ainda está casada. Se ela gosta de fardas justas ao corpo nos militares musculados. Eu digo que não, que sim e que sim e sorrio. Ela não desiste da conversa e dispara: "O Sr. Dr. ainda vai ter que ir buscá-la outra vez à Gimnaestreada ou lá como se chama o Spra onde ela faz a minicute. Ou pedricure. Isto está cheio de larápios e vai ficar pior com a crise do mercado nobiliárquico!". Inocentemente, corrijo apenas a última palavra e digo-lhe que ela se calhar quer dizer "imobiliário". Mas ela arrasta a asa para o diccionário e diz que não. Que o problema do país é que está a perder os nobres todos. "Já não há duquesias e condensias, é o que lhe digo. Isto agora é só drogados e arrumadores e lixo. E até o lixo já foi mais compostinho!". Diz que é por isso que é contra a reciclagem porque sabe que eles juntam tudo no mesmo saco ao final do dia (tem um primo que trabalha nisso há 5 anos e que deita tudo fora), e contra os políticos todos sem excepção que permitem os arrumadores lá nas ruas do bairro a estacionar a mini-van do cunhado que tem um talho em Pirescouxe. Diz, no entanto, que o Jaime Gama é muito bonito mas que não pode dizer nada disso ao marido que ele não gosta. Diz também que é a favor da tourada na Catalunha e que gosta de farturas nas festas populares do S. António. Das grandes, diz ela. Com muito açúcar e a queimar. Mas que não come à frente do marido que ele também não gosta disso. Nem o filho. Eu digo que também gosto de farturas e ela saca da mala metade de uma embrulhada em papel de jornal. A sério. Do S. João no Porto que a irmã lhe mandou pelo correio. Diz que não me vai dar a provar mas que a fartura ainda está boa. Mas não quer que eu passe mal por causa dela. Ou da irmã no Porto que é uma santa e tem visões com o Marechal Spínola. Eu agradeço tanta preocupação mas ela diz que com ela ninguém fica doente. Só a nora mas ela diz que essa nem com cogumelos do pinhal do tio que vive em Condeixa-a-Nova lá vai. Adiante. Quando estamos a chegar ao Marquês do Pombal tira um livro da mala e diz que anda a ler um romance muito bom do Mirolan Kindera. Diz que o homem é Checostrolovaco mas que escreve muito bem. E que a escrita até se parece com o título do livro. Diz que é sobre a insustentável lenteza do ser. Eu digo que talvez seja leveza mas ela diz que não, que o livro é muito lento. Mas bom. Ela diz que foi a D. Benilde lá do bairro que lhe deu. Vinha num jornal ao domingo, diz ela. E com um DVD. Mas o DVD ela não percebeu lá muito bem porque falavam em estrangeiro do princípio ao fim e o filho que é comando e um machão não lhe explicou as teclas todas do aparelho. Eu digo que já li o livro há muito tempo e que já nem me lembro bem da história. Ela pega na fartura, dá uma trincadela e abre o livro mais ou menos pela página 86. Diz que não há nada que saber. Ele é comunista. Ela é de boas famílias mas gosta de artistas com fome. O filho vai para um convento no final. Eu não me lembro nada desta parte mas ela diz que sabe ler nas entrelinhas. Diz que este Mirlan Kindera também se teve de exilar em Paris porque ninguém queria ler os livros lá na terra dele. "Era uma praga Sr. Dr. Uma praga, digo-lhe eu!". E o autocarro chega finalmente ao Saldanha.

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