O Zé Eduardo avisa com antecedência que vai passar por minha casa para deixar os miúdos. Uma antecedência de 15 minutos. Está à porta, por isso. A tocar à campainha não tarda nada. Ora aí estão eles. Eu, que acabo de tomar um duche de água fria e ainda nem calcei as pantufas, tenho de vestir a farda habitual para estas ocasiões e fazer bolos num forno ainda frio e passar o espanador pelas molduras e livros no chão. Quadros por fazer, livros por ler, revistas por abrir e folhear. Enfim, um passado desorganizado e um presente promissor.
A porta abre-se e entram os terroristas. Um precisa de ir à casa de banho de imediato e acho que nem chega a meio. A outra vem com canetas fluorescentes e começa a escrever nas paredes. O casal maravilha beija o amigo em pânico com certo desleixo e um tremendo casual chic e comunica que precisa de umas horas a sós. Longe dos terroristas. Numa Suite de um Hotel. Para curtirem o momento. Para esquecerem que tiveram filhos um dia longínquo e que pagam propinas altíssimas nos Maristas. Preparam-se para partir de imediato para Sintra ou Cascais e deixam algumas indicações. A terrorista está constipada. Tem birras de 10 em 10 minutos porque não lhe ofereceram uma Barbie Havaiana nos anos. Tem a mania que é pintora nas horas livres (todas) e vomitou o almoço. Três vezes. O terrorista está a ter um dia calmo. Já arrancou um tufo de cabelo e tentou comê-lo. Já cuspiu cinco Sugus na cara da irmã. Já ficou sem um sapato e sem as duas meias (não vai para matemático). Está a aprender a fazer beicinho quando não aceitam as suas condições. Isto promete.
A última instrução é enigmática. Os dois terroristas querem ir ao cinema. Ver o Shrek. Em 3D.
Quando me preparo para responder, já o casal de eternos namorados se despediu dos filhos e está no carro a ouvir Eric Clapton e Joe Cocker a caminho do ninho de amor na serra. Ou com o mar por perto. Ou com os dois numa falésia escarpada.
Bem, anoto prioridades. Começo por ir buscar o comedor de tufos de cabelo à casa de banho e quando chego já não há papel higiénico e os frascos de cosméticos de qualidade já foram pelos ares. Está tudo pintado de azul e laranja. Muito Pepsodent. Ele ri-se imenso e diz que está muito mais bonito e que brilha no escuro. E liga a luz para ver em pormenor. Parecem estrelas reluzentes. Ou cócó de pássaro. A constipada entra de rompante e arraga-se a mim desesperada. Tem fome. Vai vomitar. Tem fome outra vez. Vai vomitar. Que miúda tão indecisa, imagino nas eleições autárquicas.
Enfim, começa a festa no T0 com Kitchenette. E é aí que decido. Nada de loucuras criativas no apartamento e queixas dos vizinhos. Esta noite vai ser um belo de um jantar em estilo de picnic estival e sessão da noite no UCI do El Corte Inglés. Empacoto bolachas da Triunfo e sumos da Ceres (trato bem os sobrinhos), lavo as mãos dos dois e faço alguns mini-sandwiches de fiambre e queijo Brie (já passou da data mas ninguém vai perceber). Visto o meu pólo sem nódoas da Hackett e os jeans com 50% nos saldos da Sacoor. Here we go!
Vamos de metro e a viagem não custa muito a fazer. A terrorista escreve nos vidros (futura graffiter ou tagger) e o terrorista descalço salta ao colo de uma velhinha Sueca que acha imensa piada: " So lovely! In Sweden children never jump like this!". Cada macaco no seu galho, portanto. Chegamos ao cinema e há filas intermináveis. O terrorista quer ir à casa de banho outra vez e perde o outro sapato na sanita. A terrorista constipada começa a tossir para cima do vendedor de pipocas que fecha o Stand. O senhor da Bilheteira diz que já não há lugares para o Shrek em 3D. Para os próximos dois meses. Os miúdos olham para mim e começam a gritar a dizer que foram raptados. Por um extra-terrestre, ainda por cima. A constipada dá-me um pontapé e começa a fugir para a área de perfumes.
Eu, em desespero de causa, digo que era a brincar. Que afinal há bilhetes. Que vamos ver o Shrek. Eles gritam outra vez, mas de alegria. Somos felizes novamente. E entramos para a sala. Há 5 cadeiras ocupados e os terroristas acham estranho mas não vacilam. Começam a devorar o kilo de ursinhos da Haribo e a beberem Coca-Cola pelas palhinhas. Começa o filme. Chama-se "O Samurai de Okinawa". É do Akira Kurosawa. De 1979. As crianças vêm com atenção e não se rebolam nas cadeiras demasiado. Eu começo a rezar e peço para que elas aguentem até ao fim. Foi uma medida de emergência. Tive de arriscar. Ou era isto ou um alarme de incêndio. Depois de duas horas começo a temer pelo pior. As crianças não se mexem e comeram as guloseimas todas. O filme acaba. As luzes acendem-se. Elas olham para mim. Estou branco como um fantasma que não pagou o IRS a tempo.
"Tio, gostei muito. Em 3D parece a preto e branco. E os bonecos parecem mesmo reais. Como pessoas. O Shrek nasceu no Japão?". Eu nem sei o que dizer. Espero um pouco e arrisco. "Alguém quer pastilhas da Gorila?". Os miúdos desatam a rir e abraçam-me. Eu faço um balão gigante que rebenta de imediato. Tenho a cara cor-de-rosa. Sou um especialista educativo do PS.
Bloguista acidental que não acidentado (ninguém se feriu durante a criação do perfil e conta associada). Pequenas histórias de um quotidiano cheio de surpresas ao virar da esquina. Prémio Pulitzer de escrita criativa durante os últimos dez anos, sem excepção. Recomendado por milhares de escritores e críticos de Kuala Lumpur a Montevideo. Temido por alguns grupos de pressão. Talvez exagere.
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Sr Jony, para quando um livro? Adoro a sua maneira de escrever, funny, sweet and soft, e cheia de pormenores deliciosos ;) bom trabalho!!
ResponderEliminarSu! Johnny está apenas a aguardar o OK da Condé Nast e da Doubleday. Estou a fechar direitos de autor caríssimos, um Flat em Tribeca e algumas Sweat-shirts da JCrew em tons blue-grey.
ResponderEliminarAguardo também alguns elogios de pares ilustres nesta área. A Nadine Gordimer e o Coetzee prometeram escrever cartas de recomendação com ilustrações, continuo a espreitar todos os dias a caixa do correio...
BEIJO E THANKS!
And please make sure rights for an American Show will be reserved too.
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