terça-feira, 27 de julho de 2010

Os ciclos de cinema Japonês podem provocar consumos exagerados de pastilhas-elásticas...

O Zé Eduardo avisa com antecedência que vai passar por minha casa para deixar os miúdos. Uma antecedência de 15 minutos. Está à porta, por isso. A tocar à campainha não tarda nada. Ora aí estão eles. Eu, que acabo de tomar um duche de água fria e ainda nem calcei as pantufas, tenho de vestir a farda habitual para estas ocasiões e fazer bolos num forno ainda frio e passar o espanador pelas molduras e livros no chão. Quadros por fazer, livros por ler, revistas por abrir e folhear. Enfim, um passado desorganizado e um presente promissor.
A porta abre-se e entram os terroristas. Um precisa de ir à casa de banho de imediato e acho que nem chega a meio. A outra vem com canetas fluorescentes e começa a escrever nas paredes. O casal maravilha beija o amigo em pânico com certo desleixo e um tremendo casual chic e comunica que precisa de umas horas a sós. Longe dos terroristas. Numa Suite de um Hotel. Para curtirem o momento. Para esquecerem que tiveram filhos um dia longínquo e que pagam propinas altíssimas nos Maristas. Preparam-se para partir de imediato para Sintra ou Cascais e deixam algumas indicações. A terrorista está constipada. Tem birras de 10 em 10 minutos porque não lhe ofereceram uma Barbie Havaiana nos anos. Tem a mania que é pintora nas horas livres (todas) e vomitou o almoço. Três vezes. O terrorista está a ter um dia calmo. Já arrancou um tufo de cabelo e tentou comê-lo. Já cuspiu cinco Sugus na cara da irmã. Já ficou sem um sapato e sem as duas meias (não vai para matemático). Está a aprender a fazer beicinho quando não aceitam as suas condições. Isto promete.
A última instrução é enigmática. Os dois terroristas querem ir ao cinema. Ver o Shrek. Em 3D.
Quando me preparo para responder, já o casal de eternos namorados se despediu dos filhos e está no carro a ouvir Eric Clapton e Joe Cocker a caminho do ninho de amor na serra. Ou com o mar por perto. Ou com os dois numa falésia escarpada.
Bem, anoto prioridades. Começo por ir buscar o comedor de tufos de cabelo à casa de banho e quando chego já não há papel higiénico e os frascos de cosméticos de qualidade já foram pelos ares. Está tudo pintado de azul e laranja. Muito Pepsodent. Ele ri-se imenso e diz que está muito mais bonito e que brilha no escuro. E liga a luz para ver em pormenor. Parecem estrelas reluzentes. Ou cócó de pássaro. A constipada entra de rompante e arraga-se a mim desesperada. Tem fome. Vai vomitar. Tem fome outra vez. Vai vomitar. Que miúda tão indecisa, imagino nas eleições autárquicas.
Enfim, começa a festa no T0 com Kitchenette. E é aí que decido. Nada de loucuras criativas no apartamento e queixas dos vizinhos. Esta noite vai ser um belo de um jantar em estilo de picnic estival e sessão da noite no UCI do El Corte Inglés. Empacoto bolachas da Triunfo e sumos da Ceres (trato bem os sobrinhos), lavo as mãos dos dois e faço alguns mini-sandwiches de fiambre e queijo Brie (já passou da data mas ninguém vai perceber). Visto o meu pólo sem nódoas da Hackett e os jeans com 50% nos saldos da Sacoor. Here we go!
Vamos de metro e a viagem não custa muito a fazer. A terrorista escreve nos vidros (futura graffiter ou tagger) e o terrorista descalço salta ao colo de uma velhinha Sueca que acha imensa piada: " So lovely! In Sweden children never jump like this!".  Cada macaco no seu galho, portanto. Chegamos ao cinema e há filas intermináveis. O terrorista quer ir à casa de banho outra vez e perde o outro sapato na sanita. A terrorista constipada começa a tossir para cima do vendedor de pipocas que fecha o Stand. O senhor da Bilheteira diz que já não há lugares para o Shrek em 3D. Para os próximos dois meses. Os miúdos olham para mim e começam a gritar a dizer que foram raptados. Por um extra-terrestre, ainda por cima. A constipada dá-me um pontapé e começa a fugir para a área de perfumes.
Eu, em desespero de causa, digo que era a brincar. Que afinal há bilhetes. Que vamos ver o Shrek. Eles gritam outra vez, mas de alegria. Somos felizes novamente. E entramos para a sala. Há 5 cadeiras ocupados e os terroristas acham estranho mas não vacilam. Começam a devorar o kilo de ursinhos da Haribo e a beberem Coca-Cola pelas palhinhas. Começa o filme. Chama-se "O Samurai de Okinawa". É do Akira Kurosawa. De 1979. As crianças vêm com atenção e não se rebolam nas cadeiras demasiado. Eu começo a rezar e peço para que elas aguentem até ao fim. Foi uma medida de emergência. Tive de arriscar. Ou era isto ou um alarme de incêndio. Depois de duas horas começo a temer pelo pior. As crianças não se mexem e comeram as guloseimas todas. O filme acaba. As luzes acendem-se. Elas olham para mim. Estou branco como um fantasma que não pagou o IRS a tempo.
"Tio, gostei muito. Em 3D parece a preto e branco. E os bonecos parecem mesmo reais. Como pessoas. O Shrek nasceu no Japão?". Eu nem sei o que dizer. Espero um pouco e arrisco. "Alguém quer pastilhas da Gorila?". Os miúdos desatam a rir e abraçam-me. Eu faço um balão gigante que rebenta de imediato. Tenho a cara cor-de-rosa. Sou um especialista educativo do PS.

3 comentários:

  1. Sr Jony, para quando um livro? Adoro a sua maneira de escrever, funny, sweet and soft, e cheia de pormenores deliciosos ;) bom trabalho!!

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  2. Su! Johnny está apenas a aguardar o OK da Condé Nast e da Doubleday. Estou a fechar direitos de autor caríssimos, um Flat em Tribeca e algumas Sweat-shirts da JCrew em tons blue-grey.
    Aguardo também alguns elogios de pares ilustres nesta área. A Nadine Gordimer e o Coetzee prometeram escrever cartas de recomendação com ilustrações, continuo a espreitar todos os dias a caixa do correio...
    BEIJO E THANKS!

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  3. And please make sure rights for an American Show will be reserved too.

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