A Joana liga e diz que temos de falar. Mesmo. A sério. De vez.
Como o tom de voz é preocupante e ameaçador, tento lembrar-me se fiz alguma coisa nos últimos tempos que possa ser utilizado em pré-julgamento de forma nociva. Nada. Também não. Aquilo não é de certeza. A outra coisa ela só vai descobrir quando mandar trocar as resistências da máquina de secar. Ou se uma das empregadas for fanática pela limpeza em cantos e superfícies brilhantes com amoníaco. Ah...só se for o facto de ter roubado uma amostra do creme de barbear do namorado há dois anos na casa do Algarve. Cheirava bem e valeu a pena. Quero lá saber. Entrem os advogados. Julguem-me na praça pública. Mas cheiroso e com a pele bem hidratada. Como para além de grave e pesado o tom é também urgente, marcamos um café ao final da tarde. E talvez um bolo de chocolate pago a meias e comido por mim por inteiro. Também não me arrependo. Também cheira lindamente e hidrata o estômago. O bolo, digo. E pelas 18.30 PM lá estou eu no sítio habitual. Impaciente. Inquieto, Incomodado. Deve ser a cadeira. Não tem uma perna. Quando estou a tentar arranjar o objecto de design perneta chega a Joana. Em força. Colérica. Impressionante. Bronzeada excepto nas marcas do top de alças fininhas da Mango. Beija-me à pressa e pede uma limonada. Cheia de gelo. Olha-me fixamente e avança sem perdão. Quer que eu acabe com a relação da irmã. Que dê um pontapé no rabo do namorado da Sum Sum. Imediatamente. Para magoar. Ai a Sum Sum, que saudades! Mas ela nem ai nem ui com a irmã gémea. Diz que eu preciso de perceber que o namorado indigente da Sum Sum é para apagar de vez. Fazer desaparecer do mapa. Mandar fazer bolos para a Confeitaria Nacional no Natal. Na área dos brindes. A das favas já não tem vagas.
Eu confesso que estou chocado. Chocadíssimo. Chocadérrimo. E estou muito exagerado. É o bolo de chocolate. Deve estar estragado. Digo amedrontado que preciso de saber a razão de tal extermínio segmentado, tal ataque premeditado e sanguinário. Ela diz que está farta do Xico e que a irmã também já não o pode ver. Assim entendo. E assino por baixo mesmo sem ler as letras minúsculas do contrato de promessa e compra. Mas quero saber mais para avançar. Para formar um exército. Para comprar o tipo de bota correcto para bem pontapear. Ela diz que o Xico é um chato. Que não faz nada. Que não trabalha. Que só come douradinhos do Capitão Iglo. Todos os dias. Que não faz a barba há cinco meses. Que não se penteia. Que não usa desodorizante. Que usa sempre os mesmos sapatos. Até para ir dançar ao Lux. Que não lê nada. Que não ouve música. Que não fala de nenhum assunto interessante. Que acha a Condoleeza Rice sensual. Que acha a Paris Hilton uma brasa. Que acha o Milton Nascimento uma brasa. Que acha que o tempo este ano está uma brasa. Isto é mesmo grave. Tenho de intervir de imediato. A Joana não acha piada e diz que eu não percebo a gravidade da situação. O Xico não se aguenta. Não se pode ver nem a milhas numa SCUT. Não se levanta do sofá. Não lava os dentes imediatamente depois do jantar. Não range os dentes. Não usa aparelho nos dentes. Não sabe combinar as cores das calças com as meias. Não usa cinto. Não usa roupa interior. Não usa rato no computador. Não sabe assobiar. Não sabe onde fica o Kilimanjaro. Não sabe o que é o Kilimanjaro. Acha que quem sabe o que é e onde é o Kilimanjaro não tem o menor interesse. Não leu o último romance da Agustina Bessa Luís. Não ouviu o último disco dos Pink Martini. Não gosta de Dry Martini. Não gosta da azeitona do Dry Martini. Bebe directamente do gargalo da garrafa de cerveja. Não gosta de gomas. Não gosta de amêndoas cobertas com chocolate da Regina. Não gosta do nome Regina para a filha. Não gosta que lhe chamem pai. Não gosta do pai dele. Que seca! Ai Joana, que horror. Que suplício. Imagino o que tens passado. E a Sum Sum, devastada, coitada. Nas ruas da amargura. Nas avenidas do sofrimento. Que tédio. Que confusão.
"Então em que é que eu posso ajudar?".
"Tens de actuar agora", diz ela. "Não podes falhar!".
"Estou tão apaixonada que ela não pode perceber que eu lhe roubei o futuro marido".
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