Bloguista acidental que não acidentado (ninguém se feriu durante a criação do perfil e conta associada). Pequenas histórias de um quotidiano cheio de surpresas ao virar da esquina. Prémio Pulitzer de escrita criativa durante os últimos dez anos, sem excepção. Recomendado por milhares de escritores e críticos de Kuala Lumpur a Montevideo. Temido por alguns grupos de pressão. Talvez exagere.
domingo, 22 de agosto de 2010
Lavados em lágrimas...
Há momentos para tudo na vida. Para aprender a andar de bicicleta, cair vinte vezes no mesmo sítio e desejar nunca ter deixado as rodinhas na arrecadação, aprender a gostar de chá verde servido bem frio (vou lá chegar brevemente), aprender a gostar de rebuçados de funcho da Madeira, aprender a gostar de cortar o cabelo (já estive mais longe). E também há momentos para ensinar alguma coisa a alguém. A ver bons filmes numa tarde chuvosa no Inverno, a ler os livros da Marguerite Yourcenar de uma assentada, a querer sempre mais bolo de chocolate da avó. E depois também há pessoas para cada momento de aprendizagem e ensino. E para cada memória especial e electiva. Os miúdos regilas que nos davam socos no colégio sem motivo aparente e fugiam a correr e a gritar, os miúdos sonsos que respondiam sempre a tudo sem precisar de levantar a mão, os miúdos preferidos da professora pelo simples facto de serem interesseiros e lambe-botas, as miúdas com laços ridículos sempre impecáveis. E os miúdos, e miúdas, estranhos para a maioria dos outros miúdos. Os que adoravam matemática, os que adoravam ginástica-rítmica com ou sem adereços, os que adoravam estar sozinhos no recreio. E os que não tinham uma descrição fácil mas causavam estranheza imediata. Esses eram os meus preferidos. Nada a estranhar para um miúdo que adorava ter tido cabelo ruivo e ter sido muito sardento em criança. A Rosie era a minha amiga preferida no colégio porque era um extra-terrestre. Mas um extra-terrestre bonzinho e muito divertido de uma galáxia não muito distante da minha e que sabia pilotar uma nave espacial como ninguém. Era uma rapariga totalmente desengonçada com a bata sempre suja e rota e com os dedos cheios de rabiscos de lápis e canetas de feltro tipo artista boémia em Montparnasse na Paris dos anos 20. Uma rapariga algo Ana Vidigal, portanto. Eu adorava a Rosie só pelo facto de ela falar muito pouco e ter um riso totalmente idiota e descontrolado. E por ter um termo amarelo-torrado com as melhores batatas fritas do colégio (que sabiam a arroz de cabidela, curiosamente). E por gostar de sumo de pêra das latas da Compal como eu. E por trazer sempre bolachas de manteiga que a mãe fazia em casa num forno que os avós tinham trazido de Bruxelas depois da Segunda-Guerra mundial (que eu achava que tinha sido há muito muito tempo algures por Frankfurt). A Rosie tinha pai Belga e mãe Inglesa e a única costela (ou costeleta como eu dizia devido a uma estranho caso de dislexia verbal) Portuguesa era do avô paterno que se chamava Antero Eurico do Santo Cúria. Um avô reaccionário que tinha lutado contra o Franco (que era o nome do meu boneco preferido dos Estrunfes) em Espanha no cerco a Barcelona (que eu achava que era ao lado da Graça ou da Madragoa) e que tinha uma pála num olho que nos metia muito medo. A Rosie era assim o meu livro de aventuras pessoal sem sair da saula de aula. Era uma miúda solitária que adorava desenhar nas paredes das casas de banho uns bonecos estranhíssimos que ninguém entendia e que adorava resolver problemas. Obviamente que a nossa professora a detestava e a achava uma maria-rapaz que tinha de ser moldada a mão-de-ferro. Um dia, quando toda a gente estava a apresentar os trabalhos de casa e ninguém tinha conseguido resolver a questão de quantas galinhas tinham ficado num cesto de um qualquer agricultor do Redondo, a Rosie deu a resposta certa e a professora deu-lhe uma bofetada. Achou que ela se estava a armar em esperta e decidiu puni-la da única forma que uma freira frustrada Açoreana da Fajã de São Francisco sabia. À pancada. Eu, que nunca me tinha manifestado na vida, decidi no momento que as coisas não ficavam assim e que alguém tinha de clamar por justiça. Gritei um nome feio à freira da Fajã e dei-lhe uma canelada valente por debaixo da batina. Obviamente que apanhei por tabela e fomos os dois ver a Madre-Superiora que nos mandou rezear trezentas Avé-Maria e quinze terços inteiros (não era muito boa a matemática). Mas valeu a pena. A partir daí eu e a Rosie tornámo-nos inseparáveis e passámos a dar caneladas em conjunto. Isso e conselhos sobre como resolver problemas de galinhas e patos no Alentejo pós-reforma agrária por cinco tostões ou um iogurte da Yoplait aos outros miúdos. Víamos os mesmos programas na televisão (saudosos Gummy Bears e Ana dos Cabelos Ruivos), ríamo-nos das mesmas piadas e gostávamos da mesma música. Anos mais tarde até partilhámos o mesmo LP dos A-HA que repetíamos vezes sem conta no gira-discos. Até hoje. Irmãos de sangue em versão vampira familiar com um bom argumento do Allan Ball. E é por isto que quando a vejo no aeroporto com um marido de 2 metros jogador de Rugby da Nova-Zelândia que a ama incondicionalmente, 2 filhos adoráveis (um ruivo e muito sardento), uma tatuagem Maori no pulso e um sorriso do tamanho de Auckland me ponho a chorar. Há momentos para tudo na vida. Este é para chorar de alegria por reencontrar quem nos faz feliz desde sempre.
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